INUNDAÇÕES EM ALCOBAÇA NO SÉCULO XVIII (v) A grande cheia de 23 de fevereiro de 1788

Depois dos relatos das inundações de 1713 e 1774, publicamos hoje a relação, por Frei Manuel de Figueiredo, cronista dos cistercienses de Portugal, da terceira grande cheia do século XVIII, a de 1788. Convém, no entanto, lembrar que este texto, particularmente explícito, já foi por nós publicado neste jornal, no n.º 1826 de 17 de fevereiro de 1994, sendo porém soberbamente ignorado por quem promoveu, entretanto, em Alcobaça, a patranha da falsa cheia de 1772. Por isso, julgamos oportuno reproduzi-lo novamente aqui.

Relação da cheia que alagou grande parte da Vila de Alcobaça na noite de 23 para 24 de fevereiro de 1788.
«Esta foi a terceira vez que Alcobaça neste século (1) foi alagada pelos rios que a cortam, e lhe causaram ruínas e grandes prejuízos.
Já o Sr. D. José I fez acautelar estragos futuros com as suas Régias Ordens (2), mandando alargar com desembaraçada direção o rio Baça (3), vulgarmente chamado da Areeira (4). Efeitos de piedade impediram a total execução das mesmas Ordens.
O vento Sul, soprando muito rijo todo o dia 22, prognosticava ruinosas consequências: quase às 7 horas da noite, a obscuridade, fuzilação contínua e trovões distantes aumentaram os temores de maior tormenta e destroço, que em parte se dissiparam com grossíssima chuva e alguma serenidade.
Os trovões, que haviam principiado a sentir-se na noite de 21, continuaram na de 22, sempre ao largo, do Poente para o Nascente.
Todo o dia 23, choveu sem cessar, e, depois do nascimento da Lua, a cerração foi tão tapada, que não deixava divisas, nas ruas estreitas, de uma para outra parte, as casas mais vizinhas.
A mesma cerração das nuvens desatou em grossos e aturados chuveiros. Pelas 11 horas da noite, a consternação foi geral nos habitantes da ponte da porta de fora até às pontes da Praça e Conceição, pelas grandes correntes de águas que desciam da calçada de Évora, e grande enchente do rio Baça que, tumidoso, vencendo couraças e alturas dos quintais, inundava as casas e, no Rossio, entrava pela travessa da Cadeia, tocando nas padieiras mais altas das casas que estão à frente da Hospedaria do Mosteiro, e passava em algumas acima dos primeiros sobrados, subindo 16 palmos sobre o pavimento da rua do Botado, donde fugiu quase descalço, para salvar-se na ladeira imediata, Francisco Manuel da Silva da Fonseca, que teve grande prejuízo em todo o seu móvel, por entrarem as águas barrentas em todas as casas da nomeada Quinta.
A maior parte da gente já dormia e foi precisada a fugir no estado de indecência, cobrindo algumas mulheres a nudez com lençóis e cobertores, salvando-se muitos às costas de alguns moços, arrojados nadadores.
Perderam todos os moradores e negociantes os géneros e fazendas que estavam nas lojas e tendas do terreno alagado. Alguns habitadores também perderam dinheiro que guardavam nas gavetas das mesmas tendas.
A ponte da porta de fora ficou com rachas, sem guardas da parte do Sul; e por terra ficaram os portais, casas e muros da Quinta do Lago, bordejada do apontado rio que fez o mesmo na Quinta fronteira à nomeada ponte.
As couraças, que seguravam as casas da parte do rio no terreno alagado, caíram, ou ficaram arruinadas; o que também compreendeu algumas das mesmas casas; e as imediatas ao moinho da Praça de todo caíram.
As terras que cobriu e tocou o mesmo rio, já não existem; e só aparecem descarnadas penhas e tufos.
O rio Alcoa (5), por estar mais desimpedida a sua corrente na cerca do Mosteiro, não subiu tanto como na cheia de 1774; levou a ponte do lagar e moinho de cima de Chaqueda; varreu de arvoredos as suas margens dentro e fora da mesma cerca, aonde deixou uma viga sobre a ponte dos tijolos (6); alagou muitas das suas terras, engolindo outras de ambos os lados, na saída da cerca o quintal de Caetana de Azevedo e a sua casa, que pegava com a ponte da Conceição, e continuou a devastar o que encontrava até nele se verter o rio Baça.
Depois da união dos rios, entraram as suas águas nas casas da rua de baixo, causando prejuízo e perigo aos seus moradores, que fugiram dando-lhes a água pelos peitos.
Deixando já Alcobaça, fizeram os rios parte do seu caminho pela estrada, que destruíram e fizeram abater em algumas partes, levando as guardas de pedra e pau que foram postas nos dias próximos à digressão que fez a Nossa Augusta Soberana de Alcobaça à Marinha Grande (7); eles tombaram árvores, deslocaram penhas, arearam fazendas e fizeram bojar a ponte de D. Elias (8) e de todo desaparecer a muita madeira da sua fábrica.
A Quinta que tem o nome da mesma ponte ficou em parte areada, em outra sem vinha, e a estrada fronteira feito pego intransitável junto à grande açuda da Fervença, da qual quebraram o canal, ficando sem moer o lagar e moinhos da Fervença, aonde, no chamado de baixo, chegaram ao telhado as águas, as quais, juntas nos Campos da Maiorga e Valado com as que correm por estes territórios, fizeram inundação que passou muito adiante das balizas das mais lembradas no conhecimento dos velhos; e, correndo dispersas, arrombaram cômaros, arruinaram outros, levaram a ponte pedral do Pinheiro, entraram no rio em que se trabalhava, que destruíram e arrombaram, deitando abaixo as pontes da Barca (9).
No Mosteiro foram grandes os sustos. No interior da porta de baixo, as águas do rio Alcoa subiram 9 palmos e meio. O Porteiro, o Fr. Luís de Santa Ana, foi tirado às costas pelos criados, que cortaram as prisões às bestas, para não morrerem afogadas, e quebraram com machados as portas dos currais para livrarem os gados que estavam presos e fechados, por serem casados os carreiros e todos estarem nas suas casas.
O canal por onde entram as águas para a cerca, cozinha, moinhos, etc., pelo muito que escavaram as águas, entraram todas para o mesmo canal que, não podendo pela estreiteza dar-lhes vazão, romperam a península que lhes servia de forte e desabaram para o rio, e ficou em seco o mesmo canal, o que se contempla quase irreparável, e o prejuízo certo, pelas faltas das águas que, antes de romperem a mesma península, fizeram dobrar o aqueduto que reparte as águas para o refeitório, cozinha (10), etc., 339 palmos, arrojando a pedra e canos a muita distância, e, continuando a corrente, alagaram a Obra nova, fazendo abater a casa de lambicar.
O P.e Prior, avisado pelo estrondo das águas e gritos do Povo, fez com muita brevidade despertar a Comunidade, e descendo os Monges à Igreja, aberto o Sacrário, fizeram e repetiram preces até que, com o abatimento das águas, cessaram perigos e sustos.
A perda, que muitos dizem importa cinquenta contos, não pode por ora ser bem calculada, nem conhecidas as suas consequências. É muito sensível a falta de pão, pelo destroço dos moinhos, aos quais sem demora e reparo custoso não podem as águas chegar. A falta da ponte de D. Elias e as muitas terras que, despegando dos altos, entulharam as estradas, impedem a comunicação e socorro que uns Povos podem dar a outros (11).» (Fim.)

(1) A primeira em 28 de outubro de 1713. E a segunda em 11 de dezembro de 1774.
(2) Expedidas ao Tenente-Coronel Engenheiro Guilherme Elsden, em Aviso de 12 de janeiro de 1775.
(3) Nasce no distrito do Vimeiro, distante légua e meia de Alcobaça.
(4) Por entrar nele um regato que nasce ao pé de Turquel e passa perto do Casal do Areeiro.
(5) Nasce em Chaqueda, meia-légua distante de Alcobaça.
(6) D. Manuel mandou levantar esta ponte, que ficou arruinada e caiu no dia 25, quando dava meio-dia.
(7) D. Maria I esteve quatro dias em Alcobaça, no mês de outubro de 1786 (cf. Gazeta de Lisboa de 28 de outubro).
(8) Esta ponte levaram as águas nos séculos XVI, XVII, XVIII – a 11 de dezembro de 1774. Ela era de pau, fabricada pela direção do Sargento-Mor Engenheiro Isidoro Paulo Pereira.
(9) Têm este nome por haver no mesmo sítio barca de passagem até o governo de Afonso VI que mandou levantar as pontes para correrem mais facilmente as madeiras para as fragatas que se fizeram na baía de S. Martinho, donde agora só entram iates pequenos.
(10) Correm as águas nas oficinas como se não estivesse quebrado o aqueduto; o que se atribui à força da água que levantou as capas dos canos, aonde estes vêm entranhados na terra, e por estes faz corrente; mas seja o que for, é grande utilidade para o Mosteiro.
(11) Extraído de: Fr. Manuel de FIGUEIREDO, in Índice do Cartório de Alcobaça, Arquivos Nacionais / Torre do Tombo, Mosteiro de Alcobaça, livro 213, f. 478v. – Leitura, transcrição, atualização ortográfica e notas pelo Prof. Gérard LEROUX.

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