Mudam-se os tempos

José Maria André
Professor do I. S. Técnico

As Encíclicas dos Papas mudaram muito nos últimos séculos. Geralmente ocupavam uma página, hoje têm uma centena ou mais de páginas; antes abordavam com frequência problemas específicos de relações internacionais, hoje tratam sobretudo da relação com Deus ou de exigências da vida cristã. Principalmente, a linguagem das Encíclicas mudou radicalmente!

A mudança aprecia-se logo nos títulos. Por exemplo:

“Quam Aerumnosa” (quão miserável, Leão XII em 1888); “Gravissimas” (gravíssimas, Leão XIII em 1901); “Acerbo nimis” (intensamente amargo, Pio X em 1905); “Vehementer Nos” (com todo o vigor, Pio X em 1906); “Gravissimo officii munere” (grave dever da nossa missão, sobre a perseguição em França, Pio X em 1906); “Une Fois Encore” (novamente acerca da perseguição em França, Pio X em 1907); “Iamdudum” (acerca dos excessos e crimes cometidos em Portugal contra a Igreja, Pio X em 1911); “Lacrimabili statu” (numa situação que faz chorar, Pio X em 1912); “Iniquis afflictisque” (situação aflitiva de iniquidade), Pio XI em 1926); “Acerba animi” (com a alma amargurada, Pio XI 1932), “Mit brennender Sorge” (com uma inquietação ardente, Pio XI em 1937); “Ingravescentibus malis” (os males que pioram de dia para dia, Pio XI em 1937); “In multiplicibus curis” (entre as múltiplas preocupações, Pio XII em 1948); “Ingruentium malorum” (perante os males que se levantam, Pio XII em 1951); “Luctuosissimi eventus” (acontecimento tremendamente mortífero, Pio XII, em 1956); “Datis nuperrime” (recentíssima carta, acerca da perseguição na Hungria, Pio XII em 1956).

Em contrapartida, os títulos recentes costumam ser um anúncio da bondade de Deus e um convite à alegria. Podem dar-se muitos exemplos —desde a “Gaudium et spes” (as alegrias e esperanças, do Concílio Vaticano II, em 1964) até João Paulo II, Bento XVI, ou o Papa Francisco—, mas alguns títulos chegam para apreciar o contraste:

“Deus caritas est” (Deus é amor, Bento XVI em 2005); “Spe salvi” (salvos na esperança, Bento XVI em 2007); “Caritas in veritate” (amor na verdade, Bento XVI em 2009); “Evangelii gaudium” (alegria do Evangelho, Ex. ap. de Francisco em 2013); “Lumen fidei” (luz da fé, Francisco em 2013); “Laudato si’” (louvado sejas, Francisco em 2015); “Amoris laetitia” (a alegria do amor, Ex. ap. de Francisco em 2016); “Gaudete et exultate” (alegrai-vos e exultai, Ex. ap. de Francisco em 2018).

Não é preciso completar a lista para demonstrar a diferença. A mudança de linguagem é tanto mais flagrante quanto o conteúdo apresentado pela Igreja permaneceu o mesmo. Evidentemente, o que mudou foi sobretudo o mundo em que vivemos.

É fácil encontrar um paralelo na vida de Jesus. Somos muitas vezes surpreendidos pela delicadeza da sua compaixão, quando esperávamos uma crítica do mal; outras vezes ficamos admirados com a severidade das suas palavras e dos seus gestos, quando esperávamos um tom mais diplomático.

Esta flexibilidade de estilo fazia muita confusão aos fariseus: “Por que é que os teus discípulos não jejuam?” (Mt 9, 14). Os Evangelhos falam-nos dos jejuns de Jesus, duros e prolongados, mas também das festas a que assistiu. Para um fariseu, isto não faz qualquer sentido.

O próprio Jesus se queixava daqueles que não conseguiam acompanhar os tempos:

— “A quem hei-de comparar esta geração? É semelhante às crianças sentadas na praça, que gritam às outras: ‘Tocámos flauta e não bailastes! Entoámos cantos fúnebres e não choraste!”. Porque veio João, que não come nem bebe, e dizeis: ‘Tem demónio!’. Veio o Filho do homem, que come e bebe, e dizeis: ‘É um glutão, amigo de publicanos e pecadores!’. Mas a justiça foi justificada pelas suas obras” (Mt 11, 16 – 19).

Não é que antes nunca houvesse alegria e boas notícias, e agora só haja motivos de júbilo. Também não é preciso acompanhar a sensibilidade do momento, ao ritmo das crises neuróticas do mundo. A Igreja não tem de ser previsível e de facto, nos tempos que correm, tem uma mensagem totalmente inesperada: Deus ama-nos com loucura.

Talvez a nossa sociedade seja como aquela mulher adúltera, completamente desorientada na vida, apanhada em adultério, que jaz estendida no chão. Nosso Senhor olha-a com ternura, compreende-a e oferece-lhe uma novidade imprevista, que muda tudo: Deus perdoa, defende-a, nunca deixou de a amar. Independentemente do que aconteceu, é hora de recomeçar.

O Papa Francisco preferiu comparar a nossa sociedade como a tragédia dos feridos amontoados depois de uma batalha: “vejo a Igreja como um hospital de campanha depois de uma batalha”. Talvez o conceito corresponda à imagem da mulher adúltera, mas temperado com a simpatia santa do Papa.

José Maria André
Professor do I. S. Técnico

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