Caça às bruxas

Ana Caldeira
Diretora do jornal O ALCOA

Quase só falta prenderem a quem se diga contra o aborto.

Estamos assim. Depois das notícias dos EUA sobre o “retrocesso civilizacional” (assim proclamam os média nacionais) que representa o aborto deixar de ser um direito constitucional e passar a ser legislado por decisão de cada estado, veio a notícia da «infame» possibilidade de um juiz que é contra o aborto vir a integrar o Tribunal Constitucional. António de Almeida Costa, o tal juiz, escreveu em 1984 (!) um artigo sobre o aborto. Mas como ousa alguém ter uma opinião diferente da elite arrogantemente convencida de que é dona da verdade?! Vasculhado o texto, para comprovar a ignomínia, a jornalista Fernanda Câncio, que nunca reparou em nada de estranho no comportamento de luxo de Sócrates enquanto com ele mantinha uma relação, mas que tem olho afinal, destaca do artigo de 80 páginas a passagem em que é mencionado que “são raros” os casos de mulheres que engravidam na sequência de violações. Na verdade, isso é só uma desculpa. O que não desculpam é que o juiz tenha uma opinião diferente da posição dominante. Aos artigos da íntegra jornalista Fernanda Câncio, juntaram-se muitos. Luís Aguiar-Conraria chamou-lhe, no Expresso, “um juiz do século XIII”, entre outras fatais reações, como Francisco Louçã também no Expresso, Ana Gomes na SIC Notícias, ou Alexandra Leitão na CNN Portugal. Sentença: fora do Tribunal Constitucional! Em nome dos valores civilizacionais, sanciona-se o pensamento e só uns podem estar representados naquele órgão de soberania. Se fossem ideias contrárias às deles, essa coação de pensamento seria fascista; assim é iluminado progresso. Tenho esperança na humanidade e acredito que virá o dia em que irão horrorizar–se como, no séc. XX e XXI, se mataram legalmente milhões de seres humanos no útero materno e como se ostracizava a quem se dissesse contra tal. Por agora, choca a leveza como muitos quase exaltam o que – como eu e outros temos ao menos o direito de pensar – é bárbaro. E a caça às bruxas daqueles para quem a vida é sagrada ainda vai piorar.

Ana Caldeira
Diretora do jornal O ALCOA

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