O insulto

José Maria André
Professor do I. S. Técnico

Assistimos angustiados ao sofrimento de multidões de ucranianos. Continua a haver numerosas guerras, diz o Papa, “contudo, esta guerra cruel e insensata, como todas as guerras, tem uma dimensão maior e ameaça o mundo inteiro; não pode deixar de interpelar a consciência de cada cristão e de cada igreja”. Tantas dezenas de milhar de ucranianos mortos, milhões de ucranianos perseguidos, separados da família, refugiados em países que não conhecem! Os jornais contam um a um os dias que este conflito horrível se arrasta, sem se vislumbrar no horizonte a esperança de que a comunidade internacional consiga travar os russos.

Do lado russo, há milhares de soldados mortos, a economia afunda-se no esforço de conquistar a Ucrânia e ouve-se o estribilho doloroso de uma injúria repetida contra quase todos os habitantes do mundo. Qual a origem deste insulto?

Nazis e soviéticos começaram de candeias às avessas, até ao pacto de 1939 que definiu entre eles a expansão territorial de ambos. A Alemanha ficava com direito a anexar países vizinhos e metade da Polónia; a União Soviética conquistava a Estónia, a Lituânia, a Letónia e partes da Polónia, da Roménia, além de manter em seu poder a Bielorrússia, a Ucrânia, a Chechénia, a Geórgia, etc. Nessa altura em que o pacto foi útil para o alargamento do domínio soviético, os alemães eram os “irmãos nacional-socialistas”. O problema surgiu quando, depois de engordar a União Soviética com tantas conquistas, Hitler decidiu invadi-la. Nessa batalha, longa e sangrenta, alguns povos apoiaram a Rússia para se verem livres dos nazis e outros, como a Ucrânia, juntaram-se à Alemanha para se verem livres da Rússia. O resultado do gigantesco conflito cifrou-se em dezenas de milhões de mortos e, como a Alemanha acabou derrotada, os soviéticos apoderaram-se de todos os países do pacto, mais a Hungria, a Bulgária, parte da Alemanha, da Finlândia e falharam, por um triz, a Áustria. Além dos extensos territórios que anexaram a Sul.

Os dois insultos mais fortes do léxico comunista, “nazi” e “fascista”, remontam a essa traição dos nazis. Nunca mais se falou de “irmãos nacional-socialistas”. Até hoje, todos aqueles que os comunistas combatem são “nazis e fascistas”. Não importa se as pessoas não sentem afinidade com o nazismo ou o fascismo. Se são alvo da ira comunista são, por definição, “nazis e fascistas”.

Aliás, esse é justamente o ingrediente fundamental de um insulto: atribuir a alguém um conceito que ele rejeita. Se chamarem “russo” ao Putin, ou “ucraniano” ao Zelenskiy, eles agradecem, tal como se chamassem “nazi” ao Hitler, ele respondia alegremente “Heil!” e se chamassem fascista ao Mussolini, este dizia comprazido “Eia, eia, eia! Alalà!”. Em contrapartida, qualquer saudação se torna insultuosa quando se aplica à pessoa errada. Se chamarem “ucraniano” ao Putin, ele não acha graça. O mesmo, se chamarem “russo” ou “nazi” ao Zelenskiy. Ou se chamarem “mulher” a um homem, ou “homem” a uma mulher.

Ainda hoje, nos meios ligados à tradição comunista soviética, as palavras “nazi” e “fascista” são as mais usadas para insultar quem quer que seja. Por isso os comunistas de orientação chinesa lhes chamam precisamente “social-fascistas”, para os enfurecer maximamente.

Quando o regime comunista implodiu e a Rússia concedeu a liberdade a muitos países – entre eles, a Ucrânia –, trocou o próprio nome de União Soviética para Federação Russa, para significar que abandonava a ditadura e começava uma era de paz e liberdade. Desde 1991 até agora, os ucranianos era um povo-irmão, reconhecido pela Rússia; agora, a Rússia decidiu invadi-los e recuperou o antigo insulto: fascistas! Nazis!

Por mero acaso, o chefe desses “nazis” é filho de judeus, tão duramente perseguidos pelo regime nazi que Zelenskiy não tem nenhuma simpatia pelo nazismo… Mas é da essência do insulto não se adequar ao ofendido! Corre pela internet a imagem desta página, retratando humoristicamente os países do mundo tal como o regime russo os classifica, em variantes de nazi-fascismo. Podíamos acrescentar os “neo-fascistas” e mais variantes divertidas. Os epítetos mais cómicos são o da América do Sul (“futebolistas nazis”) e sobretudo o da Austrália. Como a Austrália está no hemisfério Sul, são nazis de pernas para cima e cabeça para baixo: o insulto escreve-se de pernas para o ar.

José Maria André
Professor do I. S. Técnico

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