Simão Marques Faustino Patrão (1939 – 2022)

Desapareceu um dos últimos velhos sapateiros da Benedita.
Escrever o livro “Os Sapateiros da Benedita e a sua história” foi uma aventura difícil. Desse mundo, eu só conhecia a oficina do Joaquim Patareco e a loja do meu pai. Por formação académica, sou pouco dado a depoimentos orais. Em muito casos, têm de ser “filtrados”. Acontece que, sobre este específico tema, a documentação é quase nula.
Foi o Sr. Simão que me “salvou” desta encruzilhada. Quando algumas “portas” se fecharam, ele foi de uma prestabilidade rara. Nascido na Portela do Chamiço, viveu a sua meninice e a adolescência no meio de sapateiros: familiares e vizinhos. Desde cedo, sentiu o cheiro das solas e dos cabedais. Ainda no início dos anos cinquenta do século passado, aprendeu as “manhas” do ofício. Simão era um homem bom, sociável, ponderado, alegre, à sua maneira inteligente, senhor de uma rusticidade polida. Com uma vida repartida pela Benedita, Almada, Lisboa e Rio Maior, nunca se deixou “contaminar” pelos valores urbanos e trabalhou sempre no mesmo ofício.
As histórias que me foi contando, ao longo dos últimos dez anos, eram bem reais, diretas e sem gongorismos, com detalhes que tinham algo de cinematográfico. Usava uma linguística sui generis.
Conviveu com os aprendizes de sapateiro, que só ganhavam ao fim de seis meses de trabalho, porque “davam mais perda do que ganho”. Usou calçado velho, vindo dos depósitos militares, inapto para o serviço, que depois servia para a “alma” do calçado novo. Narrou-me a história dos sapateiros militares beneditenses que exerceram a profissão nos quartéis da Flandres. Simão era uma espécie de enciclopédia viva! Viveu numa época em que as estradas da freguesia eram rudimentares. Era do tempo em que nas oficinas havia uma bilha de barro com água, tapada com uma rolha de cortiça, e por cima do gargalo existia uma caneca para beber. O líquido era precioso, quando a canícula apertava.
Recordava-se da camioneta do Bento Jácome que lhe levava as encomendas dos couros e pelarias, que vinham do Zé do Cabo de Monsanto e da Fábrica de Curtumes de Coimbra. Opinava sobre o racionamento dos produtos para o fabrico do calçado e do contrabando dos mesmos.
Simão tinha saudades das gaiolas de madeira com pintassilgos, nas oficinas, e dos alguidares de barro para deixar a sola de molho. Na infância andou descalço. Viveu com austeridade e sobreviveu com muita dificuldade.
A doença não lhe bateu à porta. Chegou de rompante. Fez uma operação de risco no Hospital de Torres Novas e foi resistindo durante dois ou três anos, aceitando as rasteiras do destino, que encarava com uma serenidade que me deixava perplexo.
Tínhamos agendado outras conversas, sem data precisa. A sua oralidade tinha sempre ritmo, com reconstruções do passado, viagens infindáveis, onde o lado pícaro chegava de súbito. Havia, ali, uma transparência discursiva digna de realce. Deixámos de ouvir a sua subtileza verbal, recordando amarguras de forma meio doce e figuras que há muito desapareceram. Durante a sua longa caminhada sofreu alguns dissabores que foi ultrapassando, mas, como me disse várias vezes, o fim estava próximo.
Deixou assim o palco da vida, um dos últimos velhos sapateiros da Benedita.
Estou-lhe eternamente grato! Obrigado, Simão!

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